Sistinas
Ladra de corpos - parte 2
#10

Ladra de corpos - parte 2

Navegando nos mares da danação eterna
Atravessando o deserto da desgraça e desespero
ou bebendo no cálice de ambrósia divina
Sua vida será posta à teste
Negros são os véus da morte
Onde pode estar a salvação,
agora que seu espírito é livre?

Dark are the veils of death - Candlemass

Ronnie ainda estava pasmo! Afinal, a mulher que ele matara algumas horas antes estava de pé na frente dele! Olhava para baixo, os cabelos cobrindo o rosto. Ela então ergueu os olhos, que brilhavam com o milagre da vida!

-Como é possível?

O velho levantou-se, deu de ombros, e perguntou, com cinismo:

-Não era isso o que queria? Por que as perguntas?

Dizendo isso, ele sussurrou mais algo estranho, e então apagou seis velas específicas na frente da mulher. Por ali ela saiu, e pareceu se equilibrar como se há muito não andasse.

-Leve-na daqui. Sua esposa está "em nela". - disse o velho, por um momento confundindo-se com os dialetos que orava, e com a linguagem normal.

A volta para casa foi estranha para Ronnie. Ele ainda não acreditava. A mulher que estava ao lado dele, no carro, estava calada, de cabeça baixa. Não tinha reflexo algum, e virava a cabeça lentamente quando ele perguntava algo. Muito lentamente, mas com uma expressão estranha nos olhos. Ela ainda não tinha dito nenhuma palavra.

Somente quando chegaram em casa, onde ela entrou com dificuldade, é que ele teve certeza que o ritual havia funcionado... A estranha sorriu. O sorriso era da vizinha, mas a ternura era de sua esposa Heather!

-Ron... resmungou.

Ninguém o chamava assim, exceto ela! Tinha funcionado!

-Por Deus! Obrigado! Funcionou! - ele gritou, pegando-a no colo. Pensou de repente que era um assassino, mas depois sorriu novamente! Era perfeito! O corpo que sempre quis possuir e a alma da mais carinhosa mulher que ele conhecia.

-Ron... - repetiu ela.

-Sim Heather?

O rosto dela contorceu-se, como que estranhando aquele nome, mas depois ela sorriu meio tímida e pediu enfim:

-Faz amor comigo?

Ronnie chorou. Lágrimas escorreram, e ele a abraçou como nunca antes!


A luz única do abajur denunciava cada curva do corpo dela, mas não mostrava tudo. Ronnie adorava aquele jogo de esconde-esconde. Sempre preferiu transar com sua esposa na penumbra. Ficava totalmente à mercê da imaginação. Como agora. Tateava. Sentia cada pedaço. Mas, ao mesmo tempo, tudo era novidade. O corpo de sua amante tinha mudado. E para melhor. Agora era malhado, perfeito.

Ela estava nua. Examinando melhor seu objeto de desejo, Ronnie viu duas tatuagens: uma quase na virilha, pequena, e outra que parecia um grande círculo trabalhado ao redor do umbigo.

Passou a mão pelo pescoço dela, que estranhamente grunhiu algo baixinho. Ele ignorou e desceu as mãos para os seios. Eram mais firmes que os de Heather. Menores, gostosos, e macios. Tinha mamilos grandes, que estavam duros pelas carícias. Quando encostou a boca ela jogou a cabeça para trás e gemeu. Atitudes típicas de Heather.

Desceu a mão para a virilha dela. Percebeu os pêlos pubianos, bem depilados, tão macios, diferentes dos de Heather, que eram mais crespos. Na verdade, ela tinha tirado quase todos os pêlos, e a ponta dos dedos dele sentiam até as leves irritações da depilação.

-Eu depilei nesta tarde, antes de você me matar.

Ronnie estranhou aquela declaração... Se a mulher estava morta, quem disse aquilo?

-Continue querido. Eu gosto. Por que não colocou ainda seu dedo grosso e safadinho em mim?

O homem acalmou-se. Heather sempre dizia aquilo quando estava excitada. Enfiou primeiro o médio, e depois o indicador, lentamente. Veio a lubrificação natural, e ele levou os dedos à boca. Era estranho olhar para o rosto daquela nova mulher, por isso evitava. Quando ela quis beijá-lo, ele desviou, e resolveu chupá-la.

-Você, safadinho, nunca gostou do meu caldo que escorre... Então por que me lambe agora?

Ronnie ficou sem responder. Era verdade. Nunca praticava sexo oral na esposa. Mas queria provar tudo que o corpo da vizinha proporcionava. Sorriu entre as coxas dela e continuou lambendo.

Após alguns minutos de sexo oral, ele a penetrou. O estranho era observar as mudanças. As posições tinham mudado. A disposição dela em tentar algumas variantes, como sexo anal, também. Ronnie aproveitava e aos poucos ia se esquecendo. A voz era da vizinha, o corpo maravilhoso também... Mas era sua esposa que articulava as frases. Ainda era, bem no fundo, sua eterna Heather.

Estava sendo a melhor trepada da vida de Ronnie.

-Não goze agora meu homem. Não ainda. Deita, me deixa cavalgar em você. Posso te amarrar? Posso Ron? - perguntou, parecendo ansiosa.

-Sim, meu amor. - ele concordou, e deitou-se.

A mulher primeiro juntou os pulsos dele à cama, e então com a calcinha, deu um nó fortíssimo no punho dele. Depois com o sutiã, amarrou a outra mão. Ronnie sentiu-se impotente, querendo apertar os seios dela, segurar aquela bunda grande e gostosa que cobiçava todas as manhãs, mas amarrado não podia. Era muito excitante.

Ela subiu, e segurando o membro encaixou-se. Começou devagar, e aos poucos aumentou a velocidade. Em segundos, estavam em brasa de novo. A mulher apoiava-se no peito dele, e jogava todo seu peso, rebolava de vez em quando, o que dava à Ronnie uma sensação deliciosa.

-Agora meu homem... goza em mim! Sabia que vítimas que morrem em êxtase sexual vão parar no inferno?

-Ohhhh, que delícia... vou... goooo...

-Goza, meu putão... Sabia que ele deu dois tiros na minha cabeça?

-Ahhhh.... - Ronnie tentava segurar o gozo inevitável.

-Isso tá muito gostoso... Seu filho da puta, filho da puta tesudo. Você nem imagina as atrocidades que aquele estuprador fez comigo. Onde você estava, seu porra? Vai meu macho... Uhhhh...

Ronnie estava em transe, totalmente concentrado no orgasmo que ia sentir em breve.

-Continua enfiando... Sente como tô molhada, como ele desliza dentro de mim... Enfia mais forte... mais rápido... Gosto mais rápido que isso. Vou matar você sabia....? Mmm, sabia?

O homem aumentou o ritmo. Queria gozar de vez.

-Agora! Agora! Agor.... - ela murmurava, pedindo - Me dá, GOZA!

Ronnie cerrou os lábios com força, segurando, então gritou e soltou toda sua porra. Ela, que se apoiava em seu peito, com um movimento rápido das mãos, abriu o tórax dele. Ronnie ainda estava urrando de prazer, quando o grito morreu.

-Seu filho da puta!!! Você me asfixiou!! Quero ver você respirar sem pulmões!!!

Ronnie via em pânico seu peito aberto, exposto. Como aquela mulher conseguiu aquilo, só usando as próprias unhas? Os nós que o amarravam na cama estavam tensionados, quase cortando os pulsos dele.

-Por que me matou? Por quê? Seu filho da puta! Sua esposa estava morta!! E agora eu te mato!

Ronnie morreu também em um minuto e meio, grotescamente amarrado na cama. A mulher desceu de cima dele. Olhava atentamente para o corpo. Então caiu de joelhos e começou a chorar...

-Não! Amor... Não morra! Sou eu, estou aqui, sua Heather está aqui. Voltei para você! Fique comigo! - repetia, mexendo no corpo vermelho que tingia os lençóis.


Ele era conhecido como Ed. As pessoas nunca souberam seu nome verdadeiro. Estudava as casas de família por um tempo, observava os horários dos maridos e filhos. Quando sabia que as esposas estavam sozinhas, atacava.

Nunca o pegaram. Era esperto. Mas dessa última vez tinha vacilado. Sim, o marido chegou antes do previsto. Assustado, Ed deu dois tiros na cabeça da dona.

Mas foi a vítima mais gostosa que ele provou. Deixou ele fazer tudo! Tudo o que ele sempre quis. Até viu a morte na face dela, quando atirou. E o pânico na cara do marido? Foi demais, impagável!

Mas, Ed a queria de novo. A dona era gostosona. Deixou tudo. Tudo! Sim, ela deixou tudo. Nunca tinha feito tudo com outras mulheres. A vacilada foi matá-la.

"Foi sem querer! Quando o marido abriu a porta, disparei por instinto. Esqueci que apontava a arma para a testa dela."

-Cale a boca! - gritou Ed, para si mesmo. A rua estava deserta. Ligou o carro. Já tinha observado bastante e escolhido a próxima casa. Ou a próxima esposa.

Sim, os jornais de Sistinas noticiavam sobre o "assassino de esposas". Traçaram até um perfil de assassino serial para ele. Esqueceram que Ed nunca matava. Estuprava sim, mas só matava se ameaçado. Apenas duas mulheres morreram na mão dele, e um cachorro.

-Sim, cachorro... desses que latem! - ironizou Ed.

Deixou o carro parado na rua, e entrou apressado no lugar que chamava de abrigo. Nunca andava armado, para não causar suspeitas. Sempre escolhia a vítima, depois voltava para casa, pensava a respeito, curtia a ansiedade, pegava seu revólver e ia de encontro ao destino.

Quando virou a chave na porta da sua casa, teve a ligeira sensação de que já estava aberta. Ignorou isso, e entrou. Quando acendeu a luz, quase caiu de susto. Tinha uma mulher sentada no sofá, esperando por ele!!!

-Você demorou. Sabe quem sou eu?

Ed coçou a cabeça. Era a mulher que ele tinha matado? Quer dizer, não era ela. Ou era?

-Afinal, dona, quem é você?

-Acho que você sabe... Não me reconhece?

Ed achou tudo estranho. Era como se conhecesse a mulher, mas nunca tinha a visto!

-O que você quer? - perguntou, vacilando.

-Achei que não ia perguntar nunca. - dizendo isso, a mulher levantou-se do sofá. Tinha o revólver dele na mão...

-Ei! Calminha aí? Que vai fazer comigo?

-Ah, outra pergunta interessante... Vou refrescar sua memória. Você meteu duas balas bem aqui, no meio da minha testa... Está lembrado? Não faz muito tempo!

-Ah! Quer se vingar, sua puta! Então por que não atira? Me mata, se é isso o que quer! Me mata logo! - gritou Ed, enraivecido.

-Ainda não. Antes de me matar, bem... Você fez algumas coisinhas comigo. Coisas que eu não gostei muito. Mas naquela noite, era você que tinha a arma na mão... Eu era apenas a esposa assustada. Acho que hoje vamos inverter os papéis, certo?

Ed suou frio, e quis recuar. Encurralado, pela primeira vez, sentiu medo.

Mas não por muito tempo. Cerca de quinze minutos depois, estava morto. Antes disso passou por todas as humilhações que a mulher pôde imaginar, e quando levou dois tiros na testa, já tinha sofrido por tudo que fizera à Heather...


A mulher saiu da casa de Ed contente. Já tinha cumprido seu destino. Mas, era tão divertido! Tinha matado as duas pessoas responsáveis por suas mortes. Era estranho. Sentia-se como um anjo vingador que volta à Terra para atormentar os assassinos.

Heather matara seu estuprador. E a vizinha, seu novo corpo, matara o marido de Heather. Agora, o corpo dividido em duas almas andava sem destino, sem rumo, e sem propósito. Uma profusão de pensamentos contraditórios que brigavam entre si:

"Sabia que seu marido me cobiçava Heather?"

"Cala sua boca, Ronnie me amava, e apenas por isso te matou! Para que eu voltasse!"

"Está enganada. Seu marido quis ter meu corpo. Por isso me escolheu."

"Escolheu para ser minha hospedeira!"

"Só que algo deu errado..."

"Agora estamos ambas mortas."

"Sim Heather. Só falta um culpado para matarmos."

"Quem?"

"Aquele maldito velho, que profanou sua alma e o meu corpo. Aquele à quem Ronnie pediu ajuda. Ele também deve morrer, não acha?"

"Sim, concordo. Ele não me deixou ter o descanso eterno, e tirou sua vida."

"Sei onde ele está, Heather."

"Vamos... afinal, ele é só um velho!"


Nadya chegou a tempo de ver o homem caído no chão. Parecia ter sido vítima de um estupro. Tinha marcas de abuso sexual pelo corpo todo. As balas que lhe abriram a cabeça apenas aliviaram o sofrimento. Sofrimento merecido, por ser ele próprio um estuprador.

Nadya era um anjo. Condenada a viver na Terra desde tempos imemoriais, perdeu suas asas na rebelião de Lúcifer. Seu corpo, apesar de sua herança e poderes divinos, ainda é mortal. Ela nunca morre totalmente, mas sempre que volta da morte tem problemas de memória. Precisa relembrar sempre quem é, e desenvolver novamente seus poderes.

Ela não sabe se é por causa da proximidade do apocalipse, mas sabe que antes já fora muito mais poderosa. Em algumas de suas encarnações, Nadya passou como simples humana. Sem desenvolver poder algum. Mas nessa vida ela acordou plena. Sabia de seus poderes, e o que estava fazendo entre os filhos do Homem.

"Eu caço e destruo o Mal."

Nadya olhou novamente para o estuprador morto, e pelo cheiro residual que saía da sala, ela conseguiu captar um perfume forte, feminino... O mesmo que sentira impregnado em Ronnie, um homem que encontrou com o tórax aberto horas atrás. Estava perto da assassina. Tinha a pista dela, e pelo estado do homem, tinha sido morto a poucos minutos.

"Estou à caminho, sanguinária."

Uma brisa soprou pela sala, e quando cessou, Nadya já tinha partido.


O velho estava sentado desajeitadamente. Um sorriso irônico no rosto, enquanto apagava o círculo do chão. Já fazia algum tempo que tinha libertado as duas almas.

-Viemos buscar você agora.

Ele olhou para trás, como se tivesse sido pêgo de surpresa, mas riu enquanto olhava para a mulher.

-Qual é a graça, velho?

-Por que voltaram aqui?

-Você é o último. Viemos matá-lo pelo que fez conosco.

-Hahahahaha! - gargalhou o velho.

A mulher lhe deu um tapa forte, e o derrubou. Caiu em cima dele, achava que ia matá-lo quando uma das janelas se quebrou, atrás deles.

Heather olhou para trás, quando viu aquilo. Era uma mulher vestida de branco, que olhava com olhos faiscantes, até que achou o demônio que procurava. O velho aproveitou-se da confusão, escapou dos braços de Heather e fugiu correndo.

-Você matou dois homens - apontou Nadya - Está na hora de voltar para o inferno de onde escapou.

Heather ficou confusa por um instante. Não sabia se corria ou se lutava. Lutava? Lutar como? Aquela mulher parecia um anjo celeste!

-Está bem. Você nos pegou. Ainda não acabamos o que viemos fazer aqui, mas preferimos parar antes que mais mortes aconteçam...

Nadya aproximou-se da mulher, que se ajoelhou em submissão.

-Sábia decisão. Dois crimes hediondos pesam contra você. Sou a justiça divina.

-Somos duas. Mate-nos. Libertará duas almas presas num único corpo.

Nadya colocou a mão na testa de Heather, orou baixinho, quando de repente, como que numa combustão espontânea, a mulher pegou fogo por completo, gritando.

Antes de queimar completamente, os lábios chamuscados das mulheres ainda disseram uma última e enigmática frase:

-Os verdadeiros demônios nunca morrem...


Dias depois, no cemitério de Sistinas, um homem sofria com a morte da filha adolescente. Era um negro, muito alto, e chorava convulsivamente. A foto da moça colocada ao lado da lápide só trazia o sorriso dela, não o sofrimento de uma morte agonizante em um incêndio.

Quando o homem ficou só, ouviu algo atrás de si. Virando-se, viu o velho esquisito. A boca dele se mexeu, dizendo calmamente:

-Se você quiser, eu posso trazê-la de volta...


Comentários do autor

Escrevi a idéia básica de "A morte dá carona" em poucos minutos, em frente a um antigo amigo meu, enquanto ele desabafava sobre seu relacionamento. Isso em 1998. Os nomes são reais.

Foi oficialmente o primeiro conto de Sistinas, publicado em 31.05.00.


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