Sistinas
Destino
#48

Destino

Com o tempo que ficarei fora de circulação, meu dom talvez enferruje e suma. Escrevo isso como legado, para ninguém específico. Vamos lá:

-O menino é o culpado! - lembro de ter gritado, esmurrando o balcão do bar. Na reportagem da TV, a esposa acusava o atual marido de ter matado um bebê, fruto do casamento anterior dela. Seu filho mais velho aparecia apaticamente na matéria, com a frieza típica das crianças malvadas. Era o assassino do bebê, e eu sabia disso por que tinha visto.

“Visto como?” você se pergunta. Não estranhe o que vou lhe contar agora, pois pra mim também não fez sentido algum quando aconteceu. Por onde começo, para que você entenda? Bom, se a criança se comporta bem, ela ganha presentes, certo? É assim desde os primórdios, um velho barbudo trás esses presentes. Não, não se adiante ao meu raciocínio. Não estou falando do Papai Noel ainda. O Papai Noel que conhecemos só aparece na Idade Média, quando a Santa Igreja resolveu publicar biografias de seus Santos e Mártires. Esses escritos - mais testemunhos de fé do que registros históricos - descreviam a vida de beatos e servos de Deus. Um desses textos contava como um caridoso barbudo salvou da prostituição as três filhas de um pobre homem, lhes dando o dote necessário em ouro para que se casassem. Esse foi um presente danado de bom, não acha? Os tempos eram outros, e os costumes, diferentes. Esse barbudo era o grego São Nicolau, o San Nicola dos católicos - Sinterklaas para os germânicos - que se tornou o inglês Santa Claus e enfim nosso Papai Noel. Bom, acho que você entendeu esse conceito, se é que já não sabia.

E, pelo meu tom, você também já deve ter percebido que não sou exatamente um crente. Eu lhe contei essa história apenas por ela fazer sentido para mim, já que gosto de entender as simbologias por trás dos ídolos que adoramos nos dias de hoje. Prometo pular a parte chata de que o Papai Noel original era verde e depois foi "modernizado" por um maçom com as cores alquímicas albedo, nigredo e rubedo. Nada disso importa para o que vou lhe contar. Nem mesmo minhas convicções pois agora, sinceramente, não sei mais no que acreditar.

Vamos voltar à linha de raciocínio: se a criança se comporta, ganha presentes. Se não, ela não ganha nada. Muito justo. Mas você nunca se perguntou o que acontece com as crianças más? Não estou falando daquelas que não escovam os dentes antes de dormir, nem das que falam palavrão, mas sim das MALVADAS de verdade, como esse garoto assassino da TV.

Sei que ele é um assassino. Eu vi!

Não consigo explicar como funciona, já que foge da minha compreensão. Na verdade tento colocar o que sinto em palavras, mas elas nunca parecem suficientes para descrever meu dom - pelo menos eu achava que era um dom no início, até ele se transformar numa maldição!

Começou assim: cinco anos atrás eu sofri um acidente na noite de Natal. Não quero falar muito dele, mas basicamente eu estava embriagado e dirigindo numa velocidade absurda, então fico bastante constrangido só de lembrar. Ainda bem que estava sozinho e ninguém além de mim se machucou. Perdi o carro mas não a vida, apesar de ter sido um tremendo de um aviso. E agora acredito em avisos.

Quando acordei do coma, um novo ano já tinha começado. Um ano solitário, pois quando você não cultiva nem amores nem amizades verdadeiras é o que acontece, cedo ou tarde. Bom, não quero me alongar nesse assunto, então vamos ao que interessa?

Aquele acidente mexeu com minha vida. Era pra eu sobreviver. O por que só fui perceber em 6 de dezembro de 2008. Foi quando apaguei pela primeira vez. Eu chamo de apagão por que é algo que acontece sem aviso; uma forte tontura seguida por perda de visão.

“Perda de visão” aqui, em nosso mundo. É como eu disse, me faltam as palavras para explicar com exatidão. Continuo enxergando numa outra realidade e ali vejo o futuro, ou as probabilidades daquele futuro acontecer. Não sei o que é realmente. Você talvez chamasse de “destino”.

Eu apago, e então vejo o destino das crianças. Só das crianças: o que acontecerá com elas, ou no que se tornarão.

Vou lhe contar como foi a primeira vez: o elevador estava em manutenção e eu, resignado, resolvi subir os seis lances de escada até meu apartamento. Sou um cara solitário, então não fiz amizades com vizinhos, tampouco com seus filhos. Mas ela estava lá, brincando na escadaria entre o 4° e o 5° andar. O sol que entrava pelas janelas reluzia em suas madeixas louras. Quando ela olhou para mim, me senti tonto e a luz começou a esmaecer. Segurei forte no corrimão para não cair. Estive à beira de um desmaio, mas preocupado em não assustá-la.

Então aquelas imagens desfocadas e distorcidas como num sonho me atingiram, e aquela criança acelerou, tornou-se uma moça e por fim uma mulher trajada em branco, confortando outras pessoas com docilidade e sabedoria. Uma médica? Apoiado em meu ombro, um velho barbudo me sorria com alegria genuína.

Acordei em minha cama. Sentado numa cadeira ao meu lado, o porteiro do prédio coçava a cabeça vigorosamente, bastante confuso. Me explicou que apaguei nas escadas, que a menina tentou me reanimar e depois correu para avisá-lo. Quando tudo foi esclarecido, agradeci ao homem e já passei a pensar em como agradecer a garotinha também. Por conta da correria moderna, pensei que não a veria mais.

O destino fez com que, alguns dias depois, eu passasse em frente a uma loja de artigos médicos. Comprei um estetoscópio por intuição. Quando cheguei no prédio, os elevadores estavam em manutenção outra vez. Eu já sabia que reencontraria a menina assim que pisei no segundo lance de escadas. O estetoscópio fez todo o sentido do mundo quando o depositei em suas mãos pequenas. Ela me agradeceu ainda de cabeça baixa e eu soube, pelo tom de voz sincero daquela criança, que aquilo a acompanharia por toda sua vida adulta.

Naquela noite tive um sonho do qual me lembrarei para sempre: estávamos todos ao redor de uma fogueira - homens e mulheres de épocas distintas em clima de celebração - até que algo cruzou o céu, pousando entre a gente. Como era época de Natal, mesmo em sonho liguei aquilo ao trenó e as renas do Papai Noel. De fato, era um homem muito velho e seus fios grisalhos balançavam ao vento quando ele desmontou de um cavalo de oito patas. O corcel era ao mesmo tempo imponente e dócil. O velho o dispensou com algumas palavras de gratidão das quais só entendi "Sleipnir", que talvez fosse seu nome, ou um título.

O tempo flui de maneira estranha em sonhos, e me vi acompanhando o velho enquanto ele falava com várias daquelas pessoas, satisfeito. Cada uma contava sobre crianças e seus feitos para ele, e recebiam seu sorriso franco de volta. Então ele estava ao meu lado, e eu lhe contava sobre a loirinha da escada e a quantidade de pessoas que ela ajudaria em sua futura profissão. Ele parecia já saber sobre o estetoscópio, e em seus olhos vi uma expressão de felicidade imensa.

Quando acordei, sabia que tinha estado com o Papai Noel. O verdadeiro. O homem de verde de Yule, o da barba alva que trazia presentes.

Isso só foi se repetir no Natal seguinte, quando eu já duvidava de minhas lembranças. Eu bebia solitário em alguma mesa de bar da periferia, quando um menino se aproximou de mim pedindo alguns trocados. O que me fez prestar a atenção nele foi a seguinte frase:

-Moço, o dinheiro não é pra mim. É pra comprar ração pros gatos que abandonaram na minha porta.

Aquilo me intrigou, então lhe estiquei uma nota amarela. Calculei rapidamente que devia dar para uns 2kg. Mas a nota caiu da minha mão antes, enquanto eu me segurava na cadeira dobrável de tinta descascada, me agarrando no metal enferrujado com medo de desmaiar. A luz foi sumindo, mas antes da escuridão vi o moleque brincando com animais, e depois já com alguns fiapos de barba no rosto, organizando um canil. Um diploma de veterinário, um programa na TV sobre animais, e por fim uma ONG de proteção. Alguma lei de preservação de bichos levaria seu nome. Senti minha cabeça bater no asfalto, e acordei no hospital.

O enfermeiro plantonista me contou o acontecido, que as pessoas do bar pediram uma ambulância, e que meu raio-x estava normal. A batida na cabeça não fora séria, e eu só pensava em voltar ao estabelecimento para procurar o garoto. Dessa vez não tive sorte, ninguém soube me informar quem ele era. Algumas noites depois o sonho se repetiu; eu reencontrei a fogueira, o velho sorridente e Sleipnir. E quis muito que o garoto visse aquele cavalo imponente algum dia.

Até aí eu tinha um dom, e eram todas crianças maravilhosas. Em 2010 “achei” um menino que no futuro criaria uma tecnologia tão fodida, tão essencial, que mudaria a vida das pessoas. Eu tive a visão, mas não consigo explicá-la, pois a tal tecnologia ainda não existe.

Mas em 2011 algo gelou meus ossos: eu encontrei uma menina SEM futuro, só um buraco negro, vazio. Entendi que ela nunca cresceria. Morreria antes disso. Vi sua morte.

Bom, acho que lhe dei o suficiente pra você entender o que está acontecendo, não? Não lhe culpo se você duvidar de um homem que, nos dias de hoje, ainda acredita em Papai Noel.

Não sabe o quanto relutei até aceitar esse nome. "Papai Noel" remete a um velho bonachão numa pintura lateral de caminhão de Coca-Cola. E isso parece idiota pra mim, tão falso quanto os pinheiros de plástico com neve de algodão em países tropicais.

Não, não esqueci: o que acontece com as crianças más? Agora que te revelei meu dom, sabe que é verdade quando digo que o menino é culpado! Eu o encontrei alguns dias atrás no supermercado, no setor de hortifrutigranjeiros. Ele vandalizava as melancias, desenhando símbolos estranhos nelas com uma pequena faca, que manuseava com muita destreza e discrição.

Antes de desmaiar, previ que ele mataria o irmão ainda bebê e depois habilmente colocaria a culpa no padrasto. "Síndrome do bebê sacudido", imagens perturbadoras de um pequeno cérebro lesionado. Alguns meses depois ele mataria um adolescente, e mais tarde também a namorada deste. Pegaria gosto pelo sangue e seguiria matando até a vida adulta. Cada vez mais safo, mais esperto. Enquanto eu caía para a inconsciência, o pequeno bastardo me olhava com a curiosidade obscena de quem dissecaria uma rã.

O sonho que tive a seguir não foi com o Papai Noel, mas sim com o lado negro dessa coisa toda. Sonhei com uma figura que andava lenta e decididamente em minha direção. Um som metálico se arrastava junto dele, aumentando a cada passo. Mesmo no ambiente desfocado do sonho percebi que era um homem bastante peludo - a ponto de confundir seus pelos com o tecido preto da roupa.

Acordei acompanhado por um rapaz, repositor do mercado. Mas eu não ouvia nada que ele me dizia. E nessa desorientação, sabia que aquela criatura negra e repugnante estivera comigo. Resmungava uma mistura de alemão com palavrões e maledicências, e sua língua peçonhenta não cabia atrás dos dentes pontiagudos. Eu não temo o diabo, então ele não tinha patas de bode. Usava botas comuns, desgastadas. Também não fedia a enxofre. Sabe quando você não usa um dos banheiros da casa por muito tempo, e fica aquele cheiro estranho saindo pelo ralo, empesteando o ambiente? Cheiro de falta de vida? Ele tinha esse cheiro, um cheiro que falava mais com a imaginação do que com o olfato.

O que se seguiu foi uma tentativa desesperada de mudar o destino daquela criança. Precisava matar o moleque assassino! Pensei em conseguir um revólver para executar a tarefa, mas sou apenas uma pessoa comum. Sabe o quanto é difícil arranjar uma arma? Não é como nos filmes, te garanto.

Depois de anos sem dirigir e ainda traumatizado, peguei um carro. Calculei de maneira fria qual seria o melhor momento para emboscar aquele pequeno escroto. A mídia, as TVs, seus “repórteres investigativos” e âncoras folclóricos; todos apontavam a culpa do crime para o padrasto. Isso facilitava o acesso ao menino, o falso inocente, que já gostava bastante da fama repentina, das entrevistas emocionadas, das fotos e capas de jornais.

Eu pisei no acelerador no mesmo instante que ele pisou na faixa de pedestres. Afundei o pedal com tanta força que até meu joelho reclamou. Meus recortes sobre o fedelho caíram do porta-luvas para o banco do passageiro. O moleque, o diabrete, escutou a fritada de pneus no asfalto e olhou para mim. Mas aí meu mundo se apagou, inesperadamente. Desmaiei ainda longe do alvo, e acabei sonhando com o homem de preto. Ele dizia que era chamado sempre que as coisas não davam certo para o Papai Noel. Seu nome era "Garra", e os erres saíram gorgolejantes de sua garganta.

Acordei no hospital com a testa rachada, num leito vigiado por dois policiais. A TV mostrava minha tentativa patética de atropelamento. O menino ganhava ainda mais aura de inocente e eu ria da ironia.

A opinião pública clamava por um julgamento rápido. Peguei mais de 10 anos por “tentativa de homicídio por motivo torpe”, ou fútil, não lembro. E com o agravante da vítima ter menos de 14 anos. E também por ter sido premeditado, com as provas que acharam no carro que aluguei. Mas eu não estava preocupado com nada disso.

Enquanto desmaiava ao volante, enxerguei uma nova versão do destino do diabrete, ainda pior: revi suas futuras vítimas, e que EU estarei entre elas.

Ele me matará quando eu sair da cadeia, e o Garra estará sorrindo!


Comentários do autor

O Krampus - de Krampen, palavra para "garra" do alto alemão antigo - é uma criatura mitológica que acompanha São Nicolau durante a época do Natal, segundo o folclore da Áustria, Alemanha, Alsácia, Suíça, Eslovênia e demais áreas das montanhas alpinas. É representado, além dos chifres, com muitos pêlos, língua imensa e patas.

Ao contrário do Papai Noel, o Krampus entra nas casas procurando crianças más, mentirosas, que fizeram pirraça ou se comportam mal durante o ano. Carrega um freixo de galhos de madeira com o qual ameaça as crianças, depois as coloca numa cesta para jogá-las na fogueira.

"Destino" foi escrito originalmente em 03.12.2012.


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